24 de outubro de 2012

Reflexões Teológicas Pré-Cirúrgicas

Amigos, chegou a hora. A cirurgia SERÁ AMANHÃ (quinta, 25/10), às 7 e meia da manhã. Os que puderem, rezem por mim.

Em vista da notícia, escrevi um texto de meditação sobre amor, vida, morte e medo, que compartilho com vocês, o qual me veio à mente quase espontaneamente.

Abraço a todos.

Sidney Silveira

Amar com medo é medo de não ser amado. É ato pela metade. Gula espiritual travestida de doação da alma. Amar com medo é rejeição, e não entrega. É pedido de caução, e não confiança. Isto porque o medo tem por objeto um mal, e o amor, um bem. O medo é a vontade em fuga, o amor é a vontade em seu ímpeto sublime. O medo é resistência psicológica, o amor é contemplação de uma excelência. O medo é força desagregadora, o amor é virtude unitiva. O medo é volátil e abrupto, o amor é firme e perene. O medo, se persiste, pode transformar-se em desespero, mas o amor, se não persiste, não é amor. Podemos chamá-lo de miragem.

Não obstante todas estas coisas, é possível o medo nascer do amor, pois, como ensinava Santo Agostinho, temer não é outra coisa senão poder perder as coisas amadas, depois de havê-las conseguido; ou não alcançá-las, depois de tê-las esperado. Ora, qual o bem que, em princípio, mais tememos perder depois de possuir? A vida. Ela é amável por ser a fonte de todos os bens que nela se dão, razão pela qual o homem lhe tem natural apego. A vida é, portanto, aquilo que naturalmente procuramos conservar, e por isso as pessoas em geral vêem na morte um mal irremediável, do qual é preciso fugir. Até certo ponto, estão certas.

Seja como for, tememos mais o sofrimento do que a morte. Isto é indicativo de que estas duas realidades não se identificam de forma unívoca – e aqui não nos custa lembrar que a morte, nos casos de sofrimento extremo, pode ser um grande alívio. A compreensão desta verdade passa pela aceitação do fato de que, neste mundo contingenciado por males de todos os tipos, não é possível amar sem passar por sofrimentos e, portanto, pelo medo que paradoxalmente nasce do amor, sendo-lhe tão contrário. Somente num mundo em que não houvesse males o amor não teria debilidades de nenhuma ordem. Somente num mundo em que não houvesse males o medo não existiria. E, livre de todos os temores, o amor refletiria a fonte eterna da qual provém. Tal mundo não é outro senão a Pátria Celeste.

Nesta atribulada instância em que nos é dado atualmente viver, no entanto, não há amor sem padecimentos. Daí o amor neste mundo vir mesclado a todas as deficiências que o medo lhe incute, como as apontadas acima. O amor humano é, pois, vínculo frágil, suscetível de ser maculado até mesmo pelo tempo, como literariamente apontara Vieira: “Atreve-se o tempo a colunas de mármore, quanto mais a corações de cera!”. E o tempo o corrói sobretudo se lhe falta o liame da eternidade ao qual os cristãos chamam “Graça” – que não tolhe a natureza, mas a aperfeiçoa. A Graça é, pois, o amor infinito de Deus ofertado às criaturas dotadas de inteligência.

O grande Tomás de Aquino certa vez escrevera – citando a Aristóteles – que entender é certo padecer ("intelligere est quaedam pati"). Referia-se ali o Doutor da Igreja a uma questão gnosiológica, a saber: às afecções da alma racional quando recebe novos conteúdos inteligíveis. Aproveitamos este “gancho” para propor o seguinte: no contexto das verdades espirituais mais elevadas, como as da fé, o homem precisa sofrer para entender ("patior ut intelligam"), ou seja, purificar-se por meio da dor para que a inteligência labore em nível de excelência e se abra ao influxo aperfeiçoador da ação divina. Só então pode ele entregar-se ao mistério do amor de Deus, do qual o nosso é pálido reflexo. 

Estamos aqui no âmbito das questões teológicas levantadas por Garrigou-Lagrange no clássico "Les trois âges de la vie intérieure. Ali o notável tomista segue a grandes doutores da Igreja – como o próprio Tomás de Aquino, São Francisco de Salles, São João da Cruz, entre outros –, ao frisar que a vida espiritual possui três etapas: purgativa, iluminativa e unitiva. A primeira é a dos iniciantes, a segunda a dos proficientes e a terceira a dos perfeitos, entendendo-se o termo “perfeito” como algo a que não falta nada para ser o que é, ou seja: alcançou o máximo de suas potencialidades operativas. 

Neste caminho da ascese à mística, “purgar” significa ir mortificando os sentidos externos (tato, olfato, visão, audição e paladar) e o sentido interno da imaginação, e depois disso a própria inteligência, a ponto de esvaziar a alma de todos os conteúdos para que Deus aja nela sem obstáculos. Mas como poucos homens têm a compreensão desta necessidade purgativa para que melhorem espiritual e moralmente, as dores da vida acabam por se tornar o grande instrumento para que a espiritualidade aflore; são um carinho da Divina Providência.

Então, o amor vai perdendo os medos, ganhando força e viço. Noutras palavras, o medo vai sendo expelido por um amor mais resistente às intempéries da vida. Tudo vai sendo relativizado, e a vida mesma passa a ter valor apenas na medida em que seja vivida na verdade e no bem – espelhos da realidade omniabarcante de Deus.

Quando, portanto, o cristão corre risco de perder a vida, o espírito do mundo não entende porque, antes de pedir pela própria sobrevivência, ele roga a Deus que seja feita a Sua vontade, a qual tem por objeto bens infinitos, seja na vida ou na morte. E não o entende também porque glorifica a vida mesmo quando esta se transforma no assentimento jubiloso às coisas mais infames e baixas. 

O espírito do mundo na verdade ama uma vida que morreu e ainda não sabe.

(Escrito em 24 de outubro de 2012, no Instituto Nacional de Cardiologia, Laranjeiras, Rio de Janeiro, véspera de minha cirurgia cardíaca)

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