16 de junho de 2011

Sob o Cristo Senhor e Rei

Por Carlos Nougué

1) Não existe o homem enquanto ente puramente natural. Antes de tudo, criou-o Deus em ordem a Si mesmo e, para tal, no estado de justiça original, estado em que a alma de Adão e Eva e seus descendentes receberia permanentemente o influxo das ideias de Deus acerca de Seus próprios mistérios e sujeitaria perfeita e harmonicamente sua potência irascível e sua potência concupiscível, e em grande parte seu corpo (que seria impassível e imortal, e só deixaria a terra como corpo glorioso); mas isso, nunca é demais dizer, com a condição de que não comessem da Árvore da Ciência do Bem e do Mal. Ora, por um lado e como diz Santo Tomás de Aquino, o feitor de uma faca, ao fazê-la, a faz com uma forma e com uma matéria corruptível por natureza; mas, se pudesse, tal feitor a faria, enquanto composto de matéria e forma, inteiramente incorruptível. Mutatis mutandis, o homem também tem uma forma, a alma, esta por si e em si incorruptível, e uma matéria, o corpo, este, como a matéria da faca, corruptível por natureza. Mas o feitor do homem, Deus, supriu este defeito e, como dito acima, o fez integramente imortal, com as potências inferiores inteiramente submetidas às potências superiores da alma, e com o corpo grandemente submetido a estas. Tal suprir se fez mediante a Graça e os dons preternaturais, além da Árvore da Vida. Ou seja, Adão e Eva foram criados em estado de Graça, não em estado puramente natural, e inteiramente ordenados ao fim último do homem e do Universo, Deus mesmo – o Fim sobrenatural por excelência. Ademais, o estado de justiça original, inteira e diretamente ordenado ao Fim sobrenatural por excelência, foi dado não apenas aos indivíduos Adão e Eva, mas à natureza do homem, ou seja, à espécie humana: seria pois integralmente transmitido por geração.

2) Quer dizer então que o homem era e seria uma espécie de anjo, sem fim ou fins naturais? Mas não disse Deus aos nossos primeiros pais que eles deviam sujeitar a terra, e dominar “sobre os peixes do mar e sobre as aves do céu, e sobre todos os animais que se movem sobre a terra” (Gênesis, XXVIII)? E, ainda que não tivessem pecado Adão e Eva, não teriam os homens de construir cidades e desenvolver as ciências e as artes? E esses fins não seriam todos fins naturais? Não; não seriam senão fins intermediários e ordenados ao fim último, porque, primeiro, como dizia o Aquinate, nenhum ente pode ter senão um fim último, e, depois, como dizia o mesmo Aquinate, o que é fim intermediário não é senão meio com relação ao fim último. Ora, obviamente, o que é meio está subordinado ao fim para o qual precisamente é meio, e, também obviamente, o que é subordinado é determinado pelo que lhe é subordinante e ordenado a ele. O homem não tem, propriamente falando, fins naturais, mas meios naturais também eles ordenados ao Fim sobrenatural. Mas a cidade (ou pólis ou Estado...), cuja ciência, a Política, é dita arquitetônica por Aristóteles, não seria um fim natural ordenado apenas extrinsecamente ao fim último do homem (como, aliás, o disseram Dante, Vitoria, Suárez, Maritain e até Lachance, entre muitos e muitos outros)? Não, porque, como dizia o Angélico, “dado que o homem ao viver segundo a virtude se ordena a um fim ulterior, que consiste na fruição divina [...], é necessário que o fim da multidão humana, que é o mesmo do indivíduo, não seja viver segundo a virtude, mas antes, por meio de uma vida virtuosa, chegar à fruição divina” (De regno, 466: 74-80). Logo, pelo que fica dito, no estado de justiça original a ordenação da cidade a Deus não seria extrínseca, mas perfeitamente intrínseca, e não seria um fim natural do homem, mas um meio natural do homem em ordem a seu fim último, a Deus mesmo e à sua própria e perfeita beatitude.

3) Mas com o pecado e a perda do estado de justiça original não terá o homem ficado em estado puramente natural? Aí está, a nosso ver, a raiz do equívoco: não, não ficou nesse suposto estado puramente natural, senão que deixou de estar ordenado à beatitude celeste para ficar condenado ao tormento infernal, ao fogo eterno e sobrenatural da geena. Assim como o estado de justiça original seria transmitido por geração a todos os indivíduos humanos se Adão e Eva não tivessem pecado, assim também, porque eles pecaram, o estado de natureza caída e ferida se transmite a todos os indivíduos humanos por geração. Nascemos nós, os filhos do pecado, condenados ao inferno, e estar condenado ao inferno por geração e nascimento é ter, obviamente, um destino nada natural, mas sobrenatural; tristíssimo, mas sobrenatural. Foi este o grande engano impingido pela serpente a Eva e Adão: como comendo da Árvore da Ciência do Bem e do Mal sereis como deuses, então tereis a vós mesmos por fim último. Inaugurava-se, assim, o humanismo, e uma história cujas cidades, como a de Caim, também nasciam sobrenaturalmente entregues ao diabo.

4) Grande, porém, é não só a justiça mas a misericórdia de Deus, e o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, e sofreu morte e morte na Cruz, e ressuscitou ao terceiro dia, e deu-nos outra vez a Graça mediante os sacramentos, e fundou aqui o Reino de Deus, a Igreja de que Ele é Cabeça e que um dia entrará triunfalmente na Jerusalém Celeste. E com isso se esclarece, antes de tudo, a história: a história, com efeito, tem por eixo e fim a Cristo mesmo, com o qual se deu a consumação dos tempos, e, se o antes e o depois de Cristo se ordenam a Ele mesmo, é porque a história não tem por fim senão a completação do número dos eleitos que O verão à direita de Deus Pai, e porque é Ele mesmo, “o Cristo Senhor”, como diz São Bento no Prólogo de sua Regra, “o verdadeiro rei”. Mas, para Seu Reino e Reinado, Deus dispôs tudo por sua Providência, que não é senão o meio por que Ele governa o mundo segundo Sua mesma Lei Eterna: assim como deu a Lei Nova ou do Espírito aos renascidos pelo batismo, assim também dera ao povo eleito a Lei Antiga como preâmbulo necessário à Nova; e, assim como fez da carne de Maria uma carne apta para gerar o Filho de Deus, assim também preparara a carne da filosofia grega e do direito romano como apta para batizar-se e facilitar assim o Reino de Deus sobre a terra; e o fizera talvez mediante graças atuais, o que em nada contrariaria a adquirida capacidade própria dos filósofos gregos e jurisconsultos romanos, ambos os quais, como já se disse, aprenderam a pensar e, dizemos nós, a legislar. (Estamos aqui no delicado e misterioso terreno onde a predestinação move infalivelmente ao fim sem porém eliminar a necessidade das obras humanas, e onde a Graça não elimina o livre-arbítrio conquanto o determine ao modo como o subordinante determina o subordinado.) Não era apta para tal a carne podre da cultura asteca, ou da cultura indiana, ou da chinesa, etc. Pois bem, Cristo habitou entre nós também para ensinar-nos, por meio de sua Paixão, das Escrituras, da Tradição e do Magistério da Igreja, que é Ele mesmo o unicamente verdadeiro Rei de tudo: da criação, dos tempos, da história, das cidades, das famílias, das ciências, artes e ofícios, e dos corações; e que fugir a Seu Reinado ou negá-lo em qualquer desses âmbitos é propriamente pecar e condenar-se. E o Reino deste verdadeiro Rei é a Igreja, e compreende não só sua Hierarquia e fiéis, mas também as cidades da Cristandade, seja a Roma começada com Constantino, sejam os reinos medievais, seja o Império Espanhol dos Reis Católicos, de Carlos V, de Filipe II. Não é outra coisa o que, em essência, e apesar da detratação de pseudotomistas, diz Santo Agostinho em A Cidade de Deus. Sim, é verdade que Cristo disse: “Dai a César o que é de César”, e a Pilatos que ele não teria poder para matá-Lo se não lhe tivesse sido outorgado por Deus Pai, deixando claro com isso que na terra o poder se divide em duas jurisdições, uma das quais, porém, a jurisdição temporal, deve subordinar-se à jurisdição espiritual assim como o corpo deve subordinar-se à alma. Ora, um corpo sem sua alma é um cadáver; e, com efeito, as cidades modernas, as que desde a própria Idade Média vêm progressivamente rejeitando sua alma, que é a Igreja, já não passam de cadáveres, como também o eram a cidade de Caim, a cidade asteca, a cidade indiana, a cidade chinesa, etc. A Cristandade é formada por dois gládios ou espadas, uma espiritual, e uma temporal, que são as cidades ordenadas e subordinadas a Cristo. As cidades que O negam, por seu lado, não são senão carniça para os abutres que andam pelo mundo para perder as almas.

5) Assim como porém até o demônio está sob o poder de Deus e a serpente é calcada pelos pés da Mulher, assim também o Reinado de nosso Senhor compreende todos os homens. Com efeito, Sua autoridade “não se estende apenas aos povos que professam a fé católica [...] toda a humanidade está realmente sob o poder de Jesus Cristo”, diz Leão XIII em Annum sacrum. Mas a Igreja, sempre mãe além de mestra, não se limita a constatá-lo; quer a salvação dos homens e, para tanto, a reordenação de suas cidades a Cristo. Por isso falava São Pio X da urgência de “restaurar tudo em Cristo”; e tudo, obviamente, não é aí uma figura de retórica, mas quer dizer tudo mesmo: das cidades aos corações, incluindo as ciências e as artes. “Neste ponto”, diz Pio XI em Quas primas, “não há diferença alguma entre os indivíduos e as sociedades domésticas e civis”, e “é evidente que também em sentido próprio e estrito a Cristo como homem pertence o título e o poder de Rei”. Essa Realeza se funda, como lembra o Padre Calderón ao tratar desta encíclica, “na União Hipostática como num direito de natureza, e na Redenção como num direito adquirido”. “A força e a natureza deste principado”, lê-se ainda na Quas primas, “é contida num triplo poder”, ou seja, legislativo, judiciário e executivo; e, se este reino é principalmente espiritual e pertence ao espiritual, tristemente porém “erraria quem negasse a Cristo homem o império sobre quaisquer coisas civis”. Prossegue o Pastor: “Se o reino de Cristo incluísse de fato todos os homens, como de direito os inclui [ut iure complectitur], por que não haveríamos de esperar aquela paz que o Rei pacífico trouxe à terra?” E manda e assevera o Pastor em nome de Cristo: “Se agora ordenamos a todos os católicos do mundo o culto universal de Cristo Rei, remediaremos as necessidades da época atual e ofereceremos uma medicina eficaz para a doença que em nossa época afeta a humanidade. Qualificamos de doença de nossa época o laicismo, seus erros e seus propósitos criminosos”.

6) Diz o Padre Calderón em El Reino de Dios en el Concilio Vaticano II: “A relação da Igreja com a cultura – que, entendida em sentido amplo, envolve não só a ciência e a arte, mas também a maneira de levar a vida familiar, econômico-social e política – é o ponto onde eclode a diferença entre a concepção tradicional e a ‘humanista’”. Com efeito, tudo (ciência, arte, educação, economia, política, etc.) deve ordenar-se essencialmente à luz da Revelação, como sucedia nas Universidades medievais. Ora, em toda e qualquer Universidade, prossegue o Padre Calderón, “a faculdade de teologia deve ser o centro e alma das demais, projetando a visão cristã em todos [grifo nosso] os campos do saber, em maior grau quanto mais humanos. Ao assumir esta função, a Igreja tomou tudo o que de verdadeiro os homens tinham pensado, purificando-o de seus erros, e criou a Cultura Cristã [...], universal como a própria Igreja. Falar de Cultura Cristã e de Cristandade é falar da mesma coisa, pois aquela é o princípio formal desta, e é o mesmo que falar da Igreja. Evangelizar e cultivar, ou seja, educar os povos na Cultura Cristã, sempre foi para a Igreja sua própria missão: Ide e ensinai”. (Pode-se compreender agora, perfeitamente, por que só pode haver catolicismo liberal ao modo degenerativo de um câncer.)

7) Como diz ainda o mesmo Padre, trata-se, enfim, de que todos adorem a Cristo no Santíssimo Sacramento, e é com este exato espírito que todos e tudo (ciência, arte, educação, economia, política, etc.) devem cantar como na festa de Cristo Rei:

“Te nationum praesides
Honore tollant publico.
Colant magistri, judices,
Leges et artes exprimant.”

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