Fonte: Revista Catolicismo (novembro de 1992)
Um Santo que rivalizou com os Anjos pela elevação de pensamentos e por obras insignes, destacando-se por seu desapego às honras, combate às heresias e empenho na reforma dos costumes.
Por Luís Carlos Azevedo
O relógio acabava de marcar
oito horas da noite em São Paulo, quando meu automóvel transpôs uma
ponte sobre o poluído e mal-cheiroso rio Tietê. Eu me dirigia ao bairro
de Santana, e ia refletindo sobre como abordar a vida de São Carlos
Borromeo nas páginas de Catolicismo. Para tanto, a iluminação elétrica ao longo do leito do rio foi-me sugestiva...
A
noite era densa. Entretanto, havia sobre o Tietê toda uma área de
claridade, que resultava das lâmpadas que ali fendiam as trevas.
De
maneira simbólica, essa era a situação do mundo no tempo de São Carlos
Borromeo (1538-1584), cuja festa celebramos a 4 de novembro: densa de
trevas de pecado, de heresias, de irreligião. Contudo, naquele contexto
–– menos infame que o de nossos dias, diga-se de passagem ––,foi ele uma
lâmpada acesa para romper as trevas. Lâmpada de fidelidade, de
afirmatividade e de coragem católicas, projetando a luz da verdadeira
doutrina da Igreja, dos ensinamentos de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Em
Milão, a 2 de outubro de 1538, na nobre família dos Borromeos ––
honrada com personagens ilustres, entre os quais um Papa e alguns
Cardeais da Santa Igreja ––, uma misteriosa luz resplandeceu sobre a
casa onde ele nascia, indicando por antecipação o quanto aquele menino
deveria ser admirável em santidade.
A tenaz protestante-muçulmana
Triste
era a época em que São Carlos viveu: já iam longe os dias esplendorosos
de intensa religiosidade dos tempos medievais! Enquanto o luteranismo
devastava a Alemanha e a Península Escandinava, o calvinismo se lançava
com violência sobre o centro e o sul da Europa, visando, ambos,
aniquilar a Santa Igreja. Simultaneamente, surgia nas ilhas britânicas o
anglicanismo. E todas essas heresias tinham por meta comum oprimir, e,
se possível, extirpar o culto católico.
Enquanto
no seio da Cristandade ardiam violentas lutas de religião, um inimigo
externo a ameaçava com virulência: o islamismo. Alguns Papas da
Renascença, desde Nicolau V até Paulo III, pregaram cruzadas contra o
Crescente. E foi só no último ano do pontificado do Papa Pio IV
(1559-1565), tio de São Carlos Borromeo, que os otomanos foram expulsos
da ilha de Malta, no Mediterrâneo. Sendo que, no pontificado seguinte,
de São :Pio V, a Europa foi duravelmente preservada da ofensiva
muçulmana devido à célebre batalha de Lepanto (1571). Foi necessário chegarmos ao século XX, para que essa ameaça se fizesse novamente presente...
Tantos
males eram ainda agravados pela corrupção geral dos costumes. A Itália
estava de tal modo acometida por ela, que em Roma o povo chegava a dizer
que, se as mulheres de má vida fossem expulsas, a cidade ficaria
vazia...
A restauração da vida da Igreja
Urgia
uma profunda renovação da vida da Igreja de então. Essa obra de
restauração foi realizada por uma plêiade de homens, cheios do Espírito
Santo, obedientes aos dogmas católicos e à legítima autoridade da Santa
Igreja. Trabalharam eles com zelo abrasado, empreendendo incansável e
enérgica atividade, não só para a sua própria Silntificação –– neste
sentido, tiveram papel decisivo os célebres Exercícios Espirituais, de
Santo Inácio –– mas também pela conversão de seus contemporâneos.
A
base dessa restauração foi o Concílio de Trento, concluído por obra do
Papa Pio IV. E nesse empreendimento se cifravam as melhores esperanças
dos fiéis.
A partir de Trento, Pio IV transformou
a Cúria Romana, reformando seus tribunais e estabelecimentos de ensino.
É preciso que se diga, desde logo, que nessa empresa monumental teve
papel inapreciável, estando junto do Papa como conselheiro e Secretário
de Estado, seu sobrinho, São Carlos Borromeo, quem, juntamente com São
Caetano de Thiene, São Felipe Neri, São Tomás de Vilanova e Santo Inácio
de Loyola, encarnava a legítima expressão da restauração católica no
século XVI. A lembrança de sua atividade apostólica se perpetuará até a
consumação dos séculos, ocupando ele um lugar destacado em tal
restauração, conhecida como Contra-Reforma.
Títulos honoríflcos prodigiosos
Já aos vinte e dois anos de idade, o jovem Carlos acumulava uma abundância prodigiosa de situações e de títulos:
Cardeal,
Secretário de Estado da Santa Sé, Administrador do Arcebispado de
Milão, protetor de Portugal e da Baixa Alemanha, legado papal em
Bolonha, protetor dos Carmelitas, dos Cônegos de Coimbra, dos
Franciscanos, da Ordem de Cristo, Grande Penitenciário da Igreja.
Funções
tais que poderiam tê-lo feito perder a cabeça, se não fosse o fato de
São Carlos, exímia e devotamente, fazer com assiduidade os Exercícios
Espirituais de Santo Inácio, que são de molde a conduzir a alma ao mais
completo desapego. Assim, soube ele conciliar admiravelmente a vida em
meio a honrarias, indispensáveis para o esplendor da Igreja, com a
humildade interior.
Perfil moral
Nessa
idade, já havia o Santo adquirido uma experiência da vida e um grau de
sabedoria e de inteligência nada comuns num jovem. Seus biógrafos no-lo
apresentam magro, de nariz curvo, com fisionomia sem charme, mas da qual
se irradiava uma expressão de calma, de energia, de eficácia operativa e
de lúcida coragem verdadeiramente incomparáveis. E tudo isso fruto de
uma profunda vida de piedade e espírito sobrenatural.
O
exemplo de sua vida de renúncias e mortificações era uma resposta viva
aos motejadores que pretendiam ver em tantos títulos uma manifestação do
nepotismo da parte do Papa, seu tio. A ponto de seu panegirista poder
dizer, sem contradita, em sua oração fúnebre:
“Em matéria de riquezas, Carlos não conheceu senão aquilo que um cão recebe de seu dono: água, pão e palha”...
Seu
prestígio como administrador era tal que o povo romano, a Cúria e os
Cardeais pensaram em oferecer-lhe a tiara pontificia, após a morte de
seu tio. Carlos, contudo, aspirava tornar-se um camaldulense*
completamente isolado, e atuou afincadamente para a eleição do Cardeal
Ghisleri, futuro São Pio V.
Aplicando as normas do Concílio de Trento
Terminadas
as sessões do Concílio de Trento, São Carlos Borromeo considerou que
deveria ser o primeiro a dar o exemplo de obediência às determinações
conciliares sobre residência episcopal, instalando-se definitivamente em
sua Arquidiocese de Milão.
A situação ali era
realmente lamentável: sacerdotes relaxados, que chegavam a ignorar a
fórmula da absolvição; igrejas vazias, a ponto de algumas delas servirem
de granjas; alguns mosteiros tão decadentes que, em seus refeitórios,
se realizavam bailes mundanos, casamentos e banquetes.
São Carlos Borromeo consagrou-se por inteiro a combater tantos desmandos.
A
23 de setembro de 1565 entrou ele solenemente em Milão e, incontinenti,
reuniu um concílio provincial, para o qual convocou todos os
sufragâneos, a fim de promulgar os decretos tridentinos e fazer conhecer
suas intenções. A seguir, trouxe para junto de si os melhores
auxiliares que pôde conseguir, com o intuito de empreender essa grande
obra de restauração: jesuítas, teatinos, barnabitas e clérigos da novel
Congregação dos Oratorianos, fundada por São Felipe Neri.
Seminários
Maiores foram criados. Em Pavia, o célebre Colégio Borromeo; em Milão, o
Colégio Suíço. Uma firme disciplina foi restaurada e os padres faltosos
convidados a se recolherem em casas de retiro. Nos mosteiros, nada mais
de festas e bailes. As religiosas de clausura receberam ordem de
colocar grades sólidas em suas janelas, a fim de que os galãs não
pudessem mais transpô-las...
É claro que uma tal
ação não podia agradar a todos, contando São Carlos com adversários
declarados ou velados. Houve uns tais.”humilhados”, ramo degenerado de
uma espécie de ordem terceira beneditina, que haviam se enriquecido no
comércio de lã, vivendo num luxo escandaloso. São Carlos quis reduzi-los
à compostura, e um deles, um tal Farina, durante a celebração do Santo
Sacrificio da Missa, tentou atingi-lo com um tiro de arcabuz.
A peste de 1576
A
glória de São Carlos Borromeo deveria chegar a seu ponto culminante em
1576, quando a cidade de Milão foi atingida por uma epidemia das mais
terríveis da época. Os pestíferos morriam de frio ou de fome, não
havendo quem se apiedasse deles. Eram entretanto visitados pessoalmente
pelo Santo, que para eles celebrava a Missa, levando-lhes o Santo
Viático. Chegou mesmo a vender todos os seus bens, inclusive sua mobília
e vestuário, para socorrê-los!
O Santo Arcebispo se impunha pelo prestígio de sua força de vontade, de sua santidade e de seu exemplo. O povo o venerava.
Defende a Suíça das Inovações protestantes
Hislóricas
foram suas visitas à Suíça, onde criou instituições católicas de grande
importância, e onde recebiam jubilosamente o “Santo Bispo”. Foi São
Carlos Borromeo quem introduziu na Suíça a Companhia de Jesus e a Ordem
dos Capuchinhos, defendendo os católicos contra as inovações
protestantes.
No ano de 1584 quando, segundo seu
costume, se retirara para fazer os Exercícios Espirituais de Santo
Inácio, sofreu redobrados acessos de febre, que lhe consumiram as
forças, vindo a expirar a 3 de novembro daquele ano. Suas últimas
palavras foram: “Eis, Senhor, eu venho, vou já”.
Em
tempos de São Carlos Borromeo, o mundo estava imerso no contrário
daquilo que ele pensava, queria e esperava. Mas o admirável Arcebispo de
Milão nos legou o exemplo de um batalhador que se sacrifica e se imola,
com vistas a extirpar a irreligião, as heresias e os pecados, para o
Reino de Cristo ser efetivo sobre a Terra.
Seguindo
seu exemplo, peçamos a Nossa Senhora que também nós façamos brilhar a
luz de nossas convicções católicas, e assim proclamarmos as verdades
eternas, em meio às trevas que toldam os horizontes de nossa época
neopagã, muito pior do que os tempos em que viveu São Carlos Borromeo.
___________________
*Camaldulense:
religioso da Ordem dos Camáldulos. Trata-se de monges eremitas segundo a
regra beneditina, instituídos no ano 960 por São Romualdo no povoado
chamado Camaldoli, na Toscana, a 40 quilômetros da cidade de Florença
(Itália). Vivem no recolhimento e no silêncio mais absolutos.
Obras consultadas:
1. Carta Encíclica Editae Saepe, de São Pio X, 29-5-1910 in AAS, 2 (1910), pp. 357-80.
2. Enciclqpedia Cattolica, Casa Editrice Sansoni, Firenze (Itália), 1949, vol. III
3. Daniel-Rops, L'Église de la Renaissance et de la Réforme, Arthême Fayard, Paris, 1955.
4. Ludovico Pastor, Historia de los Papas, Gustavo Gili Editor, Barcelona, 1929, vol.XV.
5. Le Bréviaire Romain, Labergerie, Paris, fascículo 13.
6. L’Abbé Rohrbacher, Vies de Saints, Gaume Freres, Libraires-Éditeurs, Paris, 1854, tonto VI.
7. João Batista Lehmann, Na Luz Perpétua, Livraria Editora "Lar Católico" ,Juiz de Fora (MG), 1950, vol. lI.
8. Sto. Antonio Maria Claret, Selectos Panegíricos, Imprenta de Pablo Riera, Barcelona, 1861, tomo VII.
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