Caríssimos,
Non respicias a quo, sed quod sane dicatur memoriae recommenda - não atentes a quem disse, mas ao que é dito com razão e isto, confia-o à memória [1].
Considerando
a importância do tema, repasso a vocês o texto abaixo, um sermão [2]
sobre um problema muito comum e pouco considerado: os pecados da língua.
Sem cair nos escrúpulos, podemos afirmar sem medo que tais pecados são muito frequentes - falo do meio "tradicionalista".
Falar da vida alheia e mesmo cuidar da vida alheia é a tônica de muitos conservadores, que o fazem em nome de uma pretensa caridade fraterna, alegando sua "preocupação" com a alma (!) do próximo.
A melhor forma de cuidar da alma do próximo é dar o exemplo, rezar, fazer penitência. A não ser que se tenha alguma responsabilidade sobre o próximo, deve-se lembrar que cada um
cuida de sua própria vida. Um amigo pode muito bem, com discrição (em
privado) e benevolência (com calma, sem precipitação, sem pretensão de
autoridade), expor sua preocupação - isto é caridade fraterna.
Outra coisa comum é falar mal de outrem a padres sob pretexto do bem
alheio - por exemplo, afirmar que tal ou tal pessoa fez isto ou aquilo,
falou isto ou aquilo (fazer as vezes da pessoa junto ao padre ou
diretor, fazer-se porta-voz da consciência alheia) ou fazê-lo pedindo
segredo, como se falar dos pretensos defeitos do próximo fosse lícito se for sob segredo. Devemos calar o mais possível, a não ser que
tenhamos alguma responsabilidade. Mesmo aí, deve-se guardar uma justa
medida. Uma atitude desta espécie pode causar inconvenientes e até mesmo
danos à vítima (sic) de tamanha caridade...
Este
"zelo" que faz cuidar da vida alheia é, na verdade, orgulho mal
disfarçado, que muitas vezes faz de si mesmo a medida de moralidade,
ignorando o abismo que pode haver entre a percepção pessoal e a
realidade. Pior ainda, pois julga o próximo segundo este critério,
esquecendo-se que cada caso é um caso. Isto pode se dar no silêncio do
coração, mas não raro passa para a língua... ou os dedos... outrora a
língua se exercitava sobre a mureta, de frente para a rua ou com as
vizinhas. Hoje talvez se dê noutras circunstâncias, mas pecado é o
mesmo.
Quase todos temos que fazer um exame de consciência a este respeito.
Espero que o texto seja útil.
In Iesu et Maria,
Grupo S. Domingos de Gusmão.
[1] S. Tomás, De modo studendi: http://www.hottopos.com/mp3/de_modo_studendi.htm
[2] de um padre do IBP, daí a citação inicial.
***
Os pecados da língua: a detração ou maledicência e a calúnia
Sermão para o Décimo Primeiro Domingo depois de Pentecostes
28 de julho de 2013 – Padre Daniel Pinheiro
“E levantando os olhos ao céu, deu um suspiro e disse-lhe: Ehphpheta, que quer dizer, abre-te. E imediatamente se lhe abriram os ouvidos e se lhe soltou a prisão da língua, e falava claramente.”
A língua é pequeno membro do nosso corpo,
mas grande é a sua importância e a sua influência sobre a nossa vida
espiritual. Com a língua podemos louvar a Deus, adorá-lo, rezar, fazer
Deus conhecido, podemos edificar o próximo. Com a língua, podemos
favorecer as virtudes. Todavia, com a língua podemos também pecar contra
praticamente todas as virtudes, o que leva o Apóstolo São Thiago a
dizer: “Também a língua é um fogo, um mundo de iniqüidade. A língua está
entre os nossos membros e contamina todo o corpo; e sendo inflamada
pelo inferno, incendeia o curso da nossa vida.” Podemos pecar contra a
virtude de religião, blasfemando, falando mal de Deus ou dos santos, por
exemplo. Podemos pecar contra a humildade alardeando nossas próprias
qualidades. Podemos pecar contra a castidade, com linguajar baixo ou de
duplo sentido, por exemplo. Podemos pecar contra a virtude da
veracidade, mentindo. Todavia, os pecados mais comuns que se cometem com
a língua são os pecados contra a justiça e contra a caridade. Nós
podemos pecar fazendo juízos temerários, fazendo injúrias ou,
amaldiçoando, etc. Falaremos hoje dos pecados da língua que atingem a
fama, a boa fama do próximo. Esses pecados da língua que atingem a fama
são os pecados de difamação.
Antes de tratar do pecado de difamação
propriamente dito e para compreender a sua gravidade, devemos entender o
que é a fama. Por fama, se entende a estima geral, boa ou má, que se
tem de uma pessoa. Se sua conduta honrada e boa é clara diante dos
outros, ela adquire diante das pessoas uma boa fama, uma boa reputação.
Ao contrário se é pública a sua conduta imoral ou escandalosa, ela
adquire uma má fama. No sentido próprio, a fama verdadeira é a boa fama.
E todo homem tem um direito natural a uma boa fama, pois uma pessoa não
pode ser considerada má, enquanto ela não demonstrar por suas ações ser
má. Se todo mundo tem direito a uma boa fama até que prove o contrário
por seus atos e palavras, a injusta difamação, quer dizer, o ataque
injusto à boa fama de uma pessoa é um pecado contra a justiça, que exige
restituição ou reparação pelo mal causado. A fama é um bem de grande
valor, a sagrada Escritura (Prov. 22, 1) diz que ela é mais preciosa que
grandes riquezas e que ela permanece mais do que milhares de tesouros
(Eccli. 41, 15).
A difamação pode ocorrer basicamente de duas maneiras: 1) pela detração ou maledicência e 2) pela calúnia.
1) A detração ou maledicência consiste em manifestar sem justa causa
um pecado, um vício ou defeito verdadeiro do próximo. A pessoa tem
direito não só a uma boa fama verdadeira, mas também a uma boa fama
falsa, enquanto seu pecado ou defeito permanecer oculto e não for
necessário revelá-lo. Se se critica defeitos ou pecados já conhecidos
publicamente não existe detração ou maledicência, mas pode haver falta
contra a caridade. 2) A calúnia por sua vez consiste em atribuir
falsamente ao próximo um pecado, um defeito, um vício. A calúnia
acrescenta à detração ou maledicência uma mentira.
A detração ou a calúnia podem ser feitas de forma direta ou indireta. De modo direto,
manifestando claramente o pecado alheio, verdadeiro ou falso. Isso se
faz revelando o pecado oculto, exagerando um pecado verdadeiro,
atribuindo uma má intenção a uma ação boa ou simplesmente inventando um
pecado que o outro teria cometido ou um defeito. De modo indireto,
negando ou diminuindo as boas qualidade do próximo. Isso se faz negando
o bem que o outro fez, calando maliciosamente o bem que o outro fez,
diminuindo o bem feito pelo próximo ou louvando-o menos do que se
deveria. As formas verbais dessa maledicência ou calúnia indiretas são
várias: “Sim, tal pessoa fez isso de bom, mas…” “É melhor eu nem acabar
de contar, do contrário…” Às vezes as palavras não são nem necessárias,
bastando um gesto, um sorriso para que a fama do próximo caia por terra.
A difamação, seja ela caluniosa ou simples detração, pode ocorrer seja
com a intenção explícita de denegrir o próximo seja criticando-o por
alguma outra razão (pelo hábito de falar muito, por falar sem pensar,
para utilidade própria) e sem a intenção de denegri-lo, mas prevendo que
sua fama será prejudicada.
A gravidade da difamação se mede tanto
pela importância do defeito divulgado ou falsamente atribuído quanto
pelo dano causado ao próximo com ela. Em geral, quando se revela um
defeito leve ou se atribui falsamente ao outro um pecado leve, a infâmia
é leve. Ao contrário, quando se revela ou se atribui falsamente um
pecado ou defeito grave a outra pessoa, a infâmia é grave. Pode haver,
porém exceções, em virtude da dignidade da pessoa ofendida. Assim,
revelar uma pequena falta oculta do Papa, poderia ser uma infâmia grave,
por exemplo. Além da gravidade do pecado divulgado ou falsamente
atribuído, é preciso levar em conta também a gravidade do dano causado
ao próximo. A gravidade desse dano depende da gravidade do defeito
atribuído à outra pessoa, mas depende também da qualidade da pessoa
criticada, do prestígio e da credibilidade do difamador, da quantidade e
qualidade dos ouvintes, das consequências para a família do difamado ou
para os seus bens. Alguém que inventasse, por exemplo, uma pequena
mentira sobre outra pessoa prevendo que ela perderia o emprego por causa
disso, cometeria uma falta grave Se, consideradas todas as
circunstâncias, o dano é leve, o pecado será venial. Se o dano é grave, o
pecado será mortal, se o difamador previu o grave dano. E, claro,
se a intenção é prejudicar gravemente alguém, por maledicência ou
calúnia, haverá uma falta grave, ainda que, no fim das contas, a fama ou
dano para o difamado seja leve. Do mesmo modo, haverá pecado grave se a
pessoa age por ódio ou por algum outro motivo gravemente desordenado,
ainda que o dano final não seja grave.
A difamação, como dissemos, é pecado
contra a justiça, pois prejudica o direito à boa fama que o próximo tem e
trata-se igualmente de um pecado contra a caridade, que nos proíbe
desejar ou fazer mal ao próximo. Fica claro que se trata de uma falta de
caridade porque, em geral, buscamos desculpar os defeitos dos que
amamos, atribuindo-lhes ao menos a boa intenção. Assim, quando se difama
é sinal de que a caridade está ausente. Além de ir contra a justiça e a
caridade, a revelação sem motivo suficiente de pecados ou a invenção de
pecados prejudicam o bem comum, favorecendo brigas, rixas, vinganças,
etc., que perturbam a paz e tranquilidade social.
Também os mortos têm direito a uma boa
fama. Não é lícito difamar os mortos, a não ser com causa justa e
proporcional. Seria uma causa justa, por exemplo, revelar seus defeitos
verdadeiros para impedir que seus escritos ímpios continuassem a
influenciar as almas prejudicando-as. Os historiadores têm aqui uma
maior liberdade para publicar pecados ou defeitos certos (e não
simplesmente possíveis ou prováveis), se da publicação desses fatos
haverá alguma lição proveitosa. Isso porque historia magistra vitae est (a história é mestra de vida).
Na confissão, é preciso dizer se difamou o
próximo levemente ou gravemente, quantas vezes o fez, se o dano causado
foi grave ou não. É preciso dizer também se foi por simples detração ou
maledicência, revelando defeitos verdadeiros, ou se foi por calúnia,
inventando defeitos ou pecados. É preciso também dizer o que motivou
essa ação: ódio, inveja, simples, leviandade, excesso no falar, etc.,
porque esses motivos são pecados distintos da difamação.
Quando se trata de um pecado contra a
justiça, é preciso reparar o pecado cometido pela restituição do bem
prejudicado. Portanto, o verdadeiro arrependimento da difamação inclui a
obrigação de restituir a fama do próximo e reparar todos os danos
materiais que foram ocasionados em virtude da difamação e que tenham
sido previstos pelo difamador. Se há um grave dano para a fama ou para
os bens do próximo, existe uma obrigação grave de reparar, assim que
possível. Se o dano foi leve, existe uma obrigação leve de reparar o
dano causado. Essa reparação deve ser feita o quanto antes, a fim de
evitar que a difamação se espalhe. Se se trata de uma calúnia, é preciso
fazer com que a verdade seja conhecida, dizendo que cometeu um erro
quanto ao que disse, etc. Se for preciso prejudicar a própria fama para
restabelecer a verdade, deve-se fazê-lo. Se se trata de detração ou
maledicência não se pode negar o que foi dito, pois se trata de um
defeito ou pecado verdadeiro. Será preciso, então, restituir louvando as
qualidades do difamado, buscando desculpas para a ação dele, buscando
mostrar a boa intenção dele, apesar do ato ruim. Se a difamação foi
pública ou por escrito, deve ser restituída da mesma forma. O difamador
pode ver-se livre da obrigação de restituir, se a difamação não se
realizou de fato, seja porque as pessoas já sabiam ou porque não
acreditaram, etc. Isso não elimina o pecado, mas a obrigação de
restituir. Também deixa de haver a obrigação de restituir se existe uma
impossibilidade física ou moral de fazê-lo, por exemplo, se perdeu
contato com as pessoas que ouviram as difamações ou se para reparar uma
infâmia leve tivesse que prejudicar gravemente a própria fama. Também
deixa de existir a obrigação de restituição em função do perdão dado
pelo prejudicado, se ele não exigisse mais a reparação.
A difamação é algo que muitas pessoas não
levam tão a sério e não combatem devidamente, embora sejam sérios na
prática dos outros preceitos. Existe, porém, um erro oposto, que
consiste no fato de considerar que sempre se comete um pecado ao se
revelar algum defeito ou pecado dos outros. Na verdade, é lícito revelar
os defeitos ou pecados ocultos dos outros, desde que haja causa
proporcionalmente grave para fazer isso e desde que se evite o ódio,
rancor, inveja ou qualquer outra disposição desordenada. É preciso que
haja causa proporcionalmente grave e reta intenção. (É evidente que o
sacerdote não pode em nenhuma hipótese revelar os pecados ouvidos em
confissão, nem mesmo para salvar a própria vida.) Às vezes, pode até
mesmo ser um dever revelar os defeitos ocultos de outra pessoa. Em
geral, as causas que justificam isso são por motivo religioso, por
motivo de justiça ou de caridade. Por motivo religioso, por exemplo,
quando se revela ao Bispo os defeitos sérios de um seminarista, a fim
de evitar que seja ordenado, e que venha a escandalizar o rebanho.
Também por motivo de justiça, quando se tem o dever, por ofício, de
revelar e denunciar um crime. Finalmente, por motivo de caridade, para
evitar um dano para a sociedade, para evitar um dano para si mesmo, para
evitar um dano para uma terceira pessoa ou até mesmo para ajudar a
pessoa de quem se revela o segredo. Assim, pelo bem comum, é lícito
revelar publicamente e até mesmo pela imprensa os defeitos verdadeiros
de um candidato ímpio a um cargo público. Pelo bem comum, é preciso
denunciar os que espalham erros ou doutrinas contrárias à fé e aos bons
costumes, de modo que alguém os corrija ou de modo que a influência
deles seja diminuída. Quando se trata de membros da Igreja, que podem
errar, a prudência deve ser redobrada e a caridade mantida sempre. Não
se deve também criticar aleatoriamente, de forma escandalosa ou inútil. A
pessoa que conta os defeitos de outro pode fazê-lo se isso é necessário
para buscar consolo, defesa, ou conselho, por exemplo, mas manifestando
somente o que realmente é necessário para atingir o fim desejado. Para o
bem do próprio difamado também é possível revelar seus erros ocultos,
por exemplo, quando se diz aos pais ou aos superiores os defeitos dos
filhos, a fim de que sejam corrigidos e possam levar uma vida melhor.
Pelo bem de uma terceira pessoa também é lícito revelar os defeitos
ocultos, a fim de colocar essa terceira pessoa de sobreaviso contra as
intenções perversas de quem quer prejudicá-la ou enganá-la de alguma
forma. Portanto, às vezes é lícito e bom manifestar os erros, defeitos
ou pecados verdadeiros dos outros, e pode até mesmo ser necessário.
Todavia, é preciso que haja realmente causa proporcional para fazer
isso. Nesses casos, a pessoa não tem mais direito a uma boa fama e sua
boa reputação é perdida com justiça.
Eis, então, a doutrina moral com relação a
esses pecados da língua. Cumpre notar, porém, que existe uma relação
estreita entre esses pecados da língua e os pecados do ouvido. A língua
não fala se não há ouvidos para ouvir as difamações. São Bernardino diz
que entre o difamador e o que ouve o difamador é difícil dizer quem é o
mais condenável. Assim, quando alguém começar a falar mal de outro
injustamente, devemos procurar mudar de assunto, mostrar nosso
desconforto com a situação e, se for possível, até mesmo deixar o
ambiente que se está falando mal dos outros. Devemos também procurar
manifestar as qualidades da pessoa que está sendo injustamente difamada.
Santo Agostinho tinha escrito na sala em que costumava fazer suas
refeições a seguinte frase: “Aquele que gosta de destruir pelas palavras
a vida dos outros saiba que essa mesa lhe está proibida.”
Se Deus nos deu a língua, foi para que
possamos falar coisas que nos levem até Ele, foi para honrá-lo, adorá-lo
e para edificar o próximo e não para prejudicá-lo injustamente. Se Ele
nos deu os ouvidos, foi para que aprendamos a verdade, para que
aprendamos e sigamos a sua doutrina celestial. Peçamos a Nosso Senhor
Jesus Cristo que afaste de nós os pecados da língua e dos ouvidos. Como
diz a Sagrada Escritura, no livro dos Provérbios (13, 3): “Aquele que
guarda a sua boca guarda a sua alma. Aquele que fala de modo
inconsiderado, busca a ruina.” “O homem justo será saciado de bens pelo
fruto de sua boca” (13,2).
(sermão do Pe. Daniel Pinheiro, IBP, 28/07/2013)
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