5 de agosto de 2014

Pecados da Língua

Caríssimos,


         Non respicias a quo, sed quod sane dicatur memoriae recommenda
- não atentes a quem disse, mas ao que é dito com razão e isto, confia-o à memória [1].

Considerando a importância do tema, repasso a vocês o texto abaixo, um sermão [2] sobre um problema muito comum e pouco considerado: os pecados da língua.
Sem cair nos escrúpulos, podemos afirmar sem medo que tais pecados são muito frequentes - falo do meio "tradicionalista".
          Falar da vida alheia e mesmo cuidar da vida alheia é a tônica de muitos conservadores, que o fazem em nome de uma pretensa caridade fraterna, alegando sua "preocupação" com a alma (!) do próximo.
         A melhor forma de cuidar da alma do próximo é dar o exemplo, rezar, fazer penitência. A não ser que se tenha alguma responsabilidade sobre o próximo, deve-se lembrar que cada um cuida de sua própria vida. Um amigo pode muito bem, com discrição (em privado) e benevolência (com calma, sem precipitação, sem pretensão de autoridade), expor sua preocupação - isto é caridade fraterna.
       Outra coisa comum é falar mal de outrem a padres sob pretexto do bem alheio - por exemplo, afirmar que tal ou tal pessoa fez isto ou aquilo, falou isto ou aquilo (fazer as vezes da pessoa junto ao padre ou diretor, fazer-se porta-voz da consciência alheia) ou fazê-lo pedindo segredo, como se falar dos pretensos defeitos do próximo fosse lícito se for sob segredo. Devemos calar o mais possível, a não ser que tenhamos alguma responsabilidade. Mesmo aí, deve-se guardar uma justa medida. Uma atitude desta espécie pode causar inconvenientes e até mesmo danos à vítima (sic) de tamanha caridade...
        Este "zelo" que faz cuidar da vida alheia é, na verdade, orgulho mal disfarçado, que muitas vezes faz de si mesmo a medida de moralidade, ignorando o abismo que pode haver entre a percepção pessoal e a realidade. Pior ainda, pois julga o próximo segundo este critério, esquecendo-se que cada caso é um caso. Isto pode se dar no silêncio do coração, mas não raro passa para a língua... ou os dedos... outrora a língua se exercitava sobre a mureta, de frente para a rua ou com as vizinhas. Hoje talvez se dê noutras circunstâncias, mas pecado é o mesmo.
Quase todos temos que fazer um exame de consciência a este respeito.
Espero que o texto seja útil.
In Iesu et Maria,
Grupo S. Domingos de Gusmão.
[1] S. Tomás, De modo studendi: http://www.hottopos.com/mp3/de_modo_studendi.htm
[2] de um padre do IBP, daí a citação inicial.
***
Os pecados da língua: a detração ou maledicência e a calúnia

Sermão para o Décimo Primeiro Domingo depois de Pentecostes
28 de julho de 2013 – Padre Daniel Pinheiro
“E levantando os olhos ao céu, deu um suspiro e disse-lhe: Ehphpheta, que quer dizer, abre-te. E imediatamente se lhe abriram os ouvidos e se lhe soltou a prisão da língua, e falava claramente.”
Caros católicos, no Evangelho de hoje, Nosso Senhor cura com um gesto e com palavras um surdo-mudo. Com esse gesto, Nosso Senhor quis nos dar ao menos duas lições. A primeira delas foi mostrar o modo de atuação dos sacramentos. Com um gesto e uma palavra, Cristo opera um milagre. Da mesma forma, com gestos, palavras e coisas sensíveis os sacramentos são realizados. Portanto, a Igreja, ao realizar os sacramentos, ao administrar os sacramentos nos transmite simplesmente o que ela recebeu de Cristo, como São Paulo o diz na Epístola de hoje. A segunda lição do Evangelho de hoje diz respeito aos pecados da língua e dos ouvidos. Não sabemos ao certo se esse mudo era completamente mudo ou se simplesmente não consegui falar corretamente, devido a algum defeito. Quanto a nós, nós podemos falar, mas quantas vezes não falamos corretamente, quantas vezes usamos nossa língua para ofender a Deus, prejudicar o próximo e prejudicar a nós mesmos! É dessa segunda lição do Evangelho de hoje que trataremos, caros católicos.
A língua é pequeno membro do nosso corpo, mas grande é a sua importância e a sua influência sobre a nossa vida espiritual. Com a língua podemos louvar a Deus, adorá-lo, rezar, fazer Deus conhecido, podemos edificar o próximo. Com a língua, podemos favorecer as virtudes. Todavia, com a língua podemos também pecar contra praticamente todas as virtudes, o que leva o Apóstolo São Thiago a dizer: “Também a língua é um fogo, um mundo de iniqüidade. A língua está entre os nossos membros e contamina todo o corpo; e sendo inflamada pelo inferno, incendeia o curso da nossa vida.” Podemos pecar contra a virtude de religião, blasfemando, falando mal de Deus ou dos santos, por exemplo. Podemos pecar contra a humildade alardeando nossas próprias qualidades. Podemos pecar contra a castidade, com linguajar baixo ou de duplo sentido, por exemplo. Podemos pecar contra a virtude da veracidade, mentindo. Todavia, os pecados mais comuns que se cometem com a língua são os pecados contra a justiça e contra a caridade. Nós podemos pecar fazendo juízos temerários, fazendo injúrias ou, amaldiçoando, etc. Falaremos hoje dos pecados da língua que atingem a fama, a boa fama do próximo. Esses pecados da língua que atingem a fama são os pecados de difamação.
Antes de tratar do pecado de difamação propriamente dito e para compreender a sua gravidade, devemos entender o que é a fama. Por fama, se entende a estima geral, boa ou má, que se tem de uma pessoa. Se sua conduta honrada e boa é clara diante dos outros, ela adquire diante das pessoas uma boa fama, uma boa reputação. Ao contrário se é pública a sua conduta imoral ou escandalosa, ela adquire uma má fama. No sentido próprio, a fama verdadeira é a boa fama. E todo homem tem um direito natural a uma boa fama, pois uma pessoa não pode ser considerada má, enquanto ela não demonstrar por suas ações ser má. Se todo mundo tem direito a uma boa fama até que prove o contrário por seus atos e palavras, a injusta difamação, quer dizer, o ataque injusto à boa fama de uma pessoa é um pecado contra a justiça, que exige restituição ou reparação pelo mal causado. A fama é um bem de grande valor, a sagrada Escritura (Prov. 22, 1) diz que ela é mais preciosa que grandes riquezas e que ela permanece mais do que milhares de tesouros (Eccli. 41, 15).
A difamação pode ocorrer basicamente de duas maneiras: 1) pela detração ou maledicência e 2) pela calúnia.  1) A detração ou maledicência consiste em manifestar sem justa causa um pecado, um vício ou defeito verdadeiro do próximo. A pessoa tem direito não só a uma boa fama verdadeira, mas também a uma boa fama falsa, enquanto seu pecado ou defeito permanecer oculto e não for necessário revelá-lo. Se se critica defeitos ou pecados já conhecidos publicamente não existe detração ou maledicência, mas pode haver falta contra a caridade.  2) A calúnia por sua vez consiste em atribuir falsamente ao próximo um pecado, um defeito, um vício. A calúnia acrescenta à detração ou maledicência uma mentira.
A detração ou a calúnia podem ser feitas de forma direta ou indireta. De modo direto, manifestando claramente o pecado alheio, verdadeiro ou falso. Isso se faz revelando o pecado oculto, exagerando um pecado verdadeiro, atribuindo uma má intenção a uma ação boa ou simplesmente inventando um pecado que o outro teria cometido ou um defeito. De modo indireto, negando ou diminuindo as boas qualidade do próximo. Isso se faz negando o bem que o outro fez, calando maliciosamente o bem que o outro fez, diminuindo o bem feito pelo próximo ou louvando-o menos do que se deveria. As formas verbais dessa maledicência ou calúnia indiretas são várias: “Sim, tal pessoa fez isso de bom, mas…” “É melhor eu nem acabar de contar, do contrário…” Às vezes as palavras não são nem necessárias, bastando um gesto, um sorriso para que a fama do próximo caia por terra. A difamação, seja ela caluniosa ou simples detração, pode ocorrer seja com a intenção explícita de denegrir o próximo seja criticando-o por alguma outra razão (pelo hábito de falar muito, por falar sem pensar, para utilidade própria) e sem a intenção de denegri-lo, mas prevendo que sua fama será prejudicada.
A gravidade da difamação se mede tanto pela importância do defeito divulgado ou falsamente atribuído quanto pelo dano causado ao próximo com ela. Em geral, quando se revela um defeito leve ou se atribui falsamente ao outro um pecado leve, a infâmia é leve. Ao contrário, quando se revela ou se atribui falsamente um pecado ou defeito grave a outra pessoa, a infâmia é grave. Pode haver, porém exceções, em virtude da dignidade da pessoa ofendida. Assim, revelar uma pequena falta oculta do Papa, poderia ser uma infâmia grave, por exemplo. Além da gravidade do pecado divulgado ou falsamente atribuído, é preciso levar em conta também a gravidade do dano causado ao próximo. A gravidade desse dano depende da gravidade do defeito atribuído à outra pessoa, mas depende também da qualidade da pessoa criticada, do prestígio e da credibilidade do difamador, da quantidade e qualidade dos ouvintes, das consequências para a família do difamado ou para os seus bens. Alguém que inventasse, por exemplo, uma pequena mentira sobre outra pessoa prevendo que ela perderia o emprego por causa disso, cometeria uma falta grave  Se, consideradas todas as circunstâncias, o dano é leve, o pecado será venial. Se o dano é grave, o pecado será mortal, se o difamador previu o grave dano. E, claro, se a intenção é prejudicar gravemente alguém, por maledicência ou calúnia, haverá uma falta grave, ainda que, no fim das contas, a fama ou dano para o difamado seja leve. Do mesmo modo, haverá pecado grave se a pessoa age por ódio ou por algum outro motivo gravemente desordenado, ainda que o dano final não seja grave.
A difamação, como dissemos, é pecado contra a justiça, pois prejudica o direito à boa fama que o próximo tem e trata-se igualmente de um pecado contra a caridade, que nos proíbe desejar ou fazer mal ao próximo. Fica claro que se trata de uma falta de caridade porque, em geral, buscamos desculpar os defeitos dos que amamos, atribuindo-lhes ao menos a boa intenção. Assim, quando se difama é sinal de que a caridade está ausente. Além de ir contra a justiça e a caridade, a revelação sem motivo suficiente de pecados ou a invenção de pecados prejudicam o bem comum, favorecendo brigas, rixas, vinganças, etc., que perturbam a paz e tranquilidade social.
Também os mortos têm direito a uma boa fama. Não é lícito difamar os mortos, a não ser com causa justa e proporcional. Seria uma causa justa, por exemplo, revelar seus defeitos verdadeiros para impedir que seus escritos ímpios continuassem a influenciar as almas prejudicando-as. Os historiadores têm aqui uma maior liberdade para publicar pecados ou defeitos certos (e não simplesmente possíveis ou prováveis), se da publicação desses fatos haverá alguma lição proveitosa. Isso porque historia magistra vitae est (a história é mestra de vida).
Na confissão, é preciso dizer se difamou o próximo levemente ou gravemente, quantas vezes o fez, se o dano causado foi grave ou não. É preciso dizer também se foi por simples detração ou maledicência, revelando defeitos verdadeiros, ou se foi por calúnia, inventando defeitos ou pecados. É preciso também dizer o que motivou essa ação: ódio, inveja, simples, leviandade, excesso no falar, etc., porque esses motivos são pecados distintos da difamação.
Quando se trata de um pecado contra a justiça, é preciso reparar o pecado cometido pela restituição do bem prejudicado. Portanto, o verdadeiro arrependimento da difamação inclui a obrigação de restituir a fama do próximo e reparar todos os danos materiais que foram ocasionados em virtude da difamação e que tenham sido previstos pelo difamador. Se há um grave dano para a fama ou para os bens do próximo, existe uma obrigação grave de reparar, assim que possível. Se o dano foi leve, existe uma obrigação leve de reparar o dano causado. Essa reparação deve ser feita o quanto antes, a fim de evitar que a difamação se espalhe. Se se trata de uma calúnia, é preciso fazer com que a verdade seja conhecida, dizendo que cometeu um erro quanto ao que disse, etc. Se for preciso prejudicar a própria fama para restabelecer a verdade, deve-se fazê-lo. Se se trata de detração ou maledicência não se pode negar o que foi dito, pois se trata de um defeito ou pecado verdadeiro. Será preciso, então, restituir louvando as qualidades do difamado, buscando desculpas para a ação dele, buscando mostrar a boa intenção dele, apesar do ato ruim. Se a difamação foi pública ou por escrito, deve ser restituída da mesma forma. O difamador pode ver-se livre da obrigação de restituir, se a difamação não se realizou de fato, seja porque as pessoas já sabiam ou porque não acreditaram, etc. Isso não elimina o pecado, mas a obrigação de restituir. Também deixa de haver a obrigação de restituir se existe uma impossibilidade física ou moral de fazê-lo, por exemplo, se perdeu contato com as pessoas que ouviram as difamações ou se para reparar uma infâmia leve tivesse que prejudicar gravemente a própria fama. Também deixa de existir a obrigação de restituição em função do perdão dado pelo prejudicado, se ele não exigisse mais a reparação.
A difamação é algo que muitas pessoas não levam tão a sério e não combatem devidamente, embora sejam sérios na prática dos outros preceitos. Existe, porém, um erro oposto, que consiste no fato de considerar que sempre se comete um pecado ao se revelar algum defeito ou pecado dos outros. Na verdade, é lícito revelar os defeitos ou pecados ocultos dos outros, desde que haja causa proporcionalmente grave para fazer isso e desde que se evite o ódio, rancor, inveja ou qualquer outra disposição desordenada. É preciso que haja causa proporcionalmente grave e reta intenção. (É evidente que o sacerdote não pode em nenhuma hipótese revelar os pecados ouvidos em confissão, nem mesmo para salvar a própria vida.) Às vezes, pode até mesmo ser um dever revelar os defeitos ocultos de outra pessoa. Em geral, as causas que justificam isso são por motivo religioso, por motivo de justiça ou de caridade. Por motivo religioso, por exemplo, quando se revela ao Bispo os defeitos  sérios de um seminarista, a fim de evitar que seja ordenado, e que venha a escandalizar o rebanho. Também por motivo de justiça, quando se tem o dever, por ofício, de revelar e denunciar um crime. Finalmente, por motivo de caridade, para evitar um dano para a sociedade, para evitar um dano para si mesmo, para evitar um dano para uma terceira pessoa ou até mesmo para ajudar a pessoa de quem se revela o segredo. Assim, pelo bem comum, é lícito revelar publicamente e até mesmo pela imprensa os defeitos verdadeiros de um candidato ímpio a um cargo público. Pelo bem comum, é preciso denunciar os que espalham erros ou doutrinas contrárias à fé e aos bons costumes, de modo que alguém os corrija ou de modo que a influência deles seja diminuída. Quando se trata de membros da Igreja, que podem errar, a prudência deve ser redobrada e a caridade mantida sempre. Não se deve também criticar aleatoriamente, de forma escandalosa ou inútil. A pessoa que conta os defeitos de outro pode fazê-lo se isso é necessário para buscar consolo, defesa, ou conselho, por exemplo, mas manifestando somente o que realmente é necessário para atingir o fim desejado. Para o bem do próprio difamado também é possível revelar seus erros ocultos, por exemplo, quando se diz aos pais ou aos superiores os defeitos dos filhos, a fim de que sejam corrigidos e possam levar uma vida melhor. Pelo bem de uma terceira pessoa também é lícito revelar os defeitos ocultos, a fim de colocar essa terceira pessoa de sobreaviso contra as intenções perversas de quem quer prejudicá-la ou enganá-la de alguma forma. Portanto, às vezes é lícito e bom manifestar os erros, defeitos ou pecados verdadeiros dos outros, e pode até mesmo ser necessário. Todavia, é preciso que haja realmente causa proporcional para fazer isso. Nesses casos, a pessoa não tem mais direito a uma boa fama e sua boa reputação é perdida com justiça.
Eis, então, a doutrina moral com relação a esses pecados da língua. Cumpre notar, porém, que existe uma relação estreita entre esses pecados da língua e os pecados do ouvido. A língua não fala se não há ouvidos para ouvir as difamações. São Bernardino diz que entre o difamador e o que ouve o difamador é difícil dizer quem é o mais condenável. Assim, quando alguém começar a falar mal de outro injustamente, devemos procurar mudar de assunto, mostrar nosso desconforto com a situação e, se for possível, até mesmo deixar o ambiente que se está falando mal dos outros. Devemos também procurar manifestar as qualidades da pessoa que está sendo injustamente difamada. Santo Agostinho tinha escrito na sala em que costumava fazer suas refeições a seguinte frase: “Aquele que gosta de destruir pelas palavras a vida dos outros saiba que essa mesa lhe está proibida.”
Se Deus nos deu a língua, foi para que possamos falar coisas que nos levem até Ele, foi para honrá-lo, adorá-lo e para edificar o próximo e não para prejudicá-lo injustamente. Se Ele nos deu os ouvidos, foi para que aprendamos a verdade, para que aprendamos e sigamos a sua doutrina celestial. Peçamos a Nosso Senhor Jesus Cristo que afaste de nós os pecados da língua e dos ouvidos. Como diz a Sagrada Escritura, no livro dos Provérbios (13, 3): “Aquele que guarda a sua boca guarda a sua alma. Aquele que fala de modo inconsiderado, busca a ruina.” “O homem justo será saciado de bens pelo fruto de sua boca” (13,2).

(sermão do Pe. Daniel Pinheiro, IBP, 28/07/2013)

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